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APRESENTAÇÃO

O Projeto Gema é uma realização multiplataforma sobre a música regional do Rio Grande do Sul, composta por uma websérie em dez episódios, podcasts, textos, fotografias, uma mostra de shows -realizada em dezembro de 2018- e também os registros organizados em Alùjá.

O fio condutor do projeto é a musicalidade, a diversidade e os diferentes fazeres musicais (ritualísticos, espirituais, lúdicos e de entretenimento) dos povos que compõem a herança cultural do estado. É também objeto e conteúdo desta iniciativa a cultura popular ancestral e os mestres e comunidades tradicionais que habitam seu território.


É o maior levantamento das raízes musicais do RS já feito desde as pesquisas e vivências de Paixão Côrtes e Barbosa Lessa no final dos anos 1940, e dos discos "Música Popular do Sul", da gravadora "Discos Marcus Pereira", na década de 1970. Por seu importante legado e relevância para a cultura gaúcha e brasileira, em 2016 o projeto foi finalista na categoria música do Prêmio Brasil Criativo, que valoriza a economia criativa brasileira. Em 2018, o Projeto Gema recebeu Menção Honrosa no Prêmio Rodrigo Melo Franco de Andrade, concedido pelo IPHAN - Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – um dos mais importantes reconhecimentos para a salvaguarda do patrimônio imaterial brasileiro.

PROTAGONISTAS

Protagonistas

CADA MESTRE É UMA GEMA

Tem gente que estuda para ser mestre. Alguns fazem imersões, residências, desenvolvem teses e teorias. Outros persistem e como se subissem uma escada, se tornam. Tem aqueles que encontram na porrada dos dias e em seus virtuosismos ‘quase jogos-de-cintura’ a sua formação. E tem também aqueles que simplesmente nascem em um ambiente permanente de aprendizado, onde os cuidados e o carinho dos mais velhos são os conteúdos essenciais, endossados pelos seus sistemas sensoriais e afetos que os presenciam e admiram. Assim, filhos de uma ecologia singular, nascem os mestres populares, de tantas culturas tradicionais que nesse imenso território criativo chamado Planeta Terra habitam e cultivam suas raízes, troncos, folhas e frutos.

 

Um mestre da cultura popular é alguém que tem em sua palavra uma pedra preciosa, um brilho, uma eternidade. É, acima de tudo, um comunicador. Desses que se comunicam principalmente de forma não-verbal, silenciosa, com um olhar ou um gesto. Ainda antes de se expressarem, possuem ouvidos atentos, são como satélites captando sinais que ao redor se manifestam. Analisam, avaliam, aproveitam o que podem e o que não lhes servem, deixam de lado. Respeitam. Trazem consigo conhecimentos ancestrais e genuínos, aprendizados que sustentam o presente e que podem ser as respostas mais puras para o futuro, que cada vez mais se anuncia assustador.

 

Não espere de um mestre de cultura tradicional o conhecimento dos livros, acadêmico. Pode ser que encontre, mas essa não é a busca. Um mestre tradicional não legitima seus saberes nas paredes da universidade ou no diploma que pendurado na parede se transforma em um elemento decorativo. O seu saber é vivo, orgânico. Não propõe verdades absolutas, mas se contrói de várias delas. Tem a riqueza dos detalhes da oralidade, mesmo que eles não sejam os mesmos dados precisos e estatísticos das páginas dos livros de história. Traz um ponto de vista crucial para uma comunidade, para uma família, para um ecossistema e, principalmente, para a sua vida, o seu sujeito coletivo.

 

São em seus convívios e territórios que colecionam os instantes que formam suas essências e caracteres. Não precisam ir para fora e nem manter olhares distantes para entender as ciências artesanais que dão luz e compõe as suas paisagens. Seus conhecimentos são de dentro para dentro, lá que a diferença que fazem é gestada, nasce e é muito bem cuidada, sendo alimentada, acalentada, protegida da força do tempo e suas mudanças e, sobretudo, amadurece. Mas, como diz o ditado, ‘um filho é algo que a gente cria para o mundo…’. Não à toa, hoje, no mundo todo, a cultura popular é um fenômeno, ocupando dissertações, espaços na televisão ou na indústria cultural. De dentro para fora, preenche e ressignifica a vida de muitas pessoas, encontra novos sentidos. 

 

Em Gema, tentamos o máximo possível penetrar o nosso estado de forma profunda. Profundidade essa que facilmente se descobre rasa, sendo apenas um fio de uma superfície que encobre ainda muitos mistérios. Foram feitos registros com dez diferentes protagonistas, sendo assim gerados conteúdos multiplataformas, como textos, fotos, vídeos documentários em curta-metragem, podcasts, site e revista. A partir de visitas e gravações itinerantes, registramos os índios Mbya Guarani da Aldeia Tekoa Guaviraty Porã, em Santa Maria; Maçambique de Osório, grupo negro com no mínimo 144 anos de atividades ininterruptas; Bandinha Típica Alemã Goela Seca, da cidade de Feliz; Mestre Paraquedas, sambista com quase 80 anos de história no carnaval de Porto Alegre; Luis Vagner, guitarreiro de Bagé que é um dos responsáveis pelo que hoje se conhece como  ‘samba-rock’; Bonitinho, o ‘guitar hero’ dos pampas; Adelar Bertussi, um dos mais icônicos e importantes acordeonistas do Brasil; Regional do Ibicuí, um grupo formado por quilombolas do Quilombo Ibicuí da Armada e seus vizinhos, lá de Santana do Livramento; Antônio Carlos de Xangô, um dos mais antigos alabês e pais de santo do Rio Grande do Sul e, por último, lá na Linha Solidão em Maquiné, Mestre Renato, mestre de terno de reis e luthier de rabecas, violinos, cavaquinhos e violões.

 

Dentro desse recorte de dez protagonistas, nem todos são considerados ou se consideram mestres, o que também pode ser muito subjetivo. Vherá Poty, jovem liderança Mbya, entende-se muito mais como um mediador entre sua tribo e os giruás (não-índios) do que como um detentor dos grandes conhecimentos de seu povo. Como ele mesmo escreve na apresentação de um livro de fotografias em que é coautor, ‘é aquele que escuta quando os mais velhos falam’. 

 

Paraquedas é mestre griô, contador de histórias, tem em sua palavra o poder do ensino e de um caminho alternativo para muitos jovens; Faustino Antônio é o Chefe do Tambor do grupo Maçambique de Osório, o que o torna, de certa forma, o mestre do grupo: a tradição está com sua famíla há gerações, já foi dançante (o último da fila), guia e, se precisar, será o Rei, função hoje ocupada por seu pai. Mestre Renato recebeu em 2009 o Prêmio Culturas Populares Dona Isabel do Ministério da Cultura, em reconhecimento ao seu trabalho; Romeo Mário Braun, da Goela Seca, diz que é o seu ‘dirigiente’; Antônio Carlos de Xangô segue formando alabês e tem filhos-de-santo mundo afora; Nilton Vaqueiro, da Comunidade Quilombola Ibicuí da Armada, é trovador, locutor de rodeios, tem o dom da palavra: é ele quem conhece e conta a saga de sua família e ensina sobre as tradições locais, como o preparo do café tropeiro.

 

Adelar Bertussi e Bonitinho, embora nascidos no interior do estado, imersos em suas culturas locais, estavam sintonizados nas ondas do rádio ou nos fluxos da fronteira, percorreram com seus ônibus boa parte do chão gaúcho e brasileiro, acumulam trocas e experiências, têm muito para ensinar. Luis Vagner, com toda a sua espiritualidade e generosidade, emociona aqueles que o acessam, seja através de sua música, seja através de seu abraço. Se oferece e se entrega por inteiro, somando na vida de quem lhe procura e permite novas amizades.

 

Assim, todos os protagonistas do projeto Gema constroem e afirmam suas identidades, por mais tortos que os seus caminhos e processos possam ter sido. Identidades, deles e de suas comunidades e/ou coletivos, que precisam ser tão respeitadas como o a atriz da telenovela em horário nobre ou o craque do seu time do coração. Não foram as características acima que nos levaram até eles – a maior parte delas desconhecíamos –, mas são elas que agora fazem com que os queiramos por perto, para sempre. Contam histórias, guardam os conhecimentos de seus antigos e com muito respeito transmitem aos mais novos, são mediadores, vivem naquilo que para muitos é apenas exótico, realizam trocas, respeitam o tempo e o espaço.

 

Dentro desta perspectiva, e dentro do que propomos em nosso projeto, cada um deles é uma vida, um embrião para que novos nascimentos – de ideias, de arte, de cultura – aconteçam, sem prazo ou data de validade. Em cada nascimento, os mesmos traços dos seus antepassados, ou misturados, como o povo e a história que se fundem e se envolvem. Para nós, são como gemas, de onde podemos esperar um alimento (para alma) ou uma vida, que nasce e que faz nascer. Ou essas duas coisas em uma só. Tal qual as culturas, histórias e tradições que personificam, são eternos. São mestres, e cada mestre é uma gema.

texto escrito por Lucas Luz, originalmente publicado na revista ArteSESC II/2016

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